Organizar férias pode ser divertido, mesmo que seja um processo entremeado de tarefas chatas. Em tempos de pandemia, talvez sobre apenas a parte chata. Caso não haja planos de viagens e afins, vira apenas uma questão de otimizar a duração das férias.

Nesse contexto, “organizar” férias é um típico problema a ser resolvido com programação por restrição: é possível definir uma função objetivo, as regras são bem definidas e há várias soluções possíveis.

Para uma única pessoa, resolver esse problema com otimização é claramente overengineering. Talvez, faça sentido em alguns casos, como organizar férias de um time com centenas de pessoas. Para uma única pessoa, é mais simples perder alguns minutos e resolver manualmente.

Não é algo realmente útil, mas achei interessante como exercício, fazer uma otimização de férias.

Especificando o problema

Levantar requisitos do problema é crucial, seja ao desenvolver um software ou modelo de machine learning, mas em problemas de otimização os requisitos podem inviabilizar a solução. A depender dos requisitos, pode ser simplesmente impossível modelar ou executar a otimização em tempo hábil.

Para mim, um leigo no assunto, há muitas coisas que não saberia descrever como um modelo de otimização. Preciso pensar bastante, para conseguir implementar algumas restrições e cálculos, que seriam triviais em programação imperativa.

Destacada a importância dessa etapa, vamos partir para a especificação.

Definindo restrições

As regras de férias são bem claras e definidas pela CLT, o que facilita o levantamento das restrições:

  • Férias podem ser divididas em 3 períodos, um deles precisa ter ao menos 14 dias e todos devem ter mais do que 5 dias.

  • O período total é de 30 dias corridos, que devem ser utilizados no período de 12 meses.

  • As férias não podem começar próximo de feriados e folgas remuneradas, precisam ser 3 dias antes pelo menos.

  • O funcionário pode vender até 10 dias de férias para o empregador.

A organização das férias é prerrogativa do empregador, então é provável que haja mais regras na prática. Além das regras do empregador, o próprio empregado costuma ter restrições de cunho pessoal: combinar as férias com o restante da família ou estar alinhada com outros eventos (e.g viagens, casamentos, mudanças).

Considerando um cenário mais realista, com restrições adicionais, o problema de otimização se torna ainda menos útil: o espaço de busca se torna tão pequeno, que basta uma olhada no calendário para resolvê-lo.

Definindo a função objetivo

A função objetivo não é tão bem definida como as restrições, já que cada pessoa tem suas prioridades. Como é apenas um exercício, vou usar o que considero — anedoticamente — as prioridades mais comuns à maioria das pessoas:

  1. Otimizar a quantidade de folga total, evitando férias que coincidam com feriados e finais de semana.

  2. Emendar as férias com algum feriado estendido, aumentado o tempo contíguo de descanso.

  3. Ponderar a distância entre os períodos de férias, para não ficarem muito próximos uns aos outros.

Enumerei os objetivos, porque a ordem é importante nessa etapa: a prioridade dos objetivos muda a definição da função.

Pensando em um indivíduo, definir uma função objetivo é a parte mais complicada: as prioridades são subjetivas e individuais, não é fácil generalizar e ponderar prioridades. Por outro lado, para o caso de uma empresa que organiza as férias de seus funcionários, diria que é até recomendável ter as regras definidas matematicamente.

Resolvendo o problema

Os meus parcos conhecimentos do tópico são todos provenientes de um curso introdutório de otimização. Nesse curso, é utilizada a linguagem MiniZinc para implementar as soluções.

O MiniZinc é uma linguagem de alto nível, desenhada para descrever problemas de otimização e/ou restrições. A ideia é escrever somente o modelo nela, independentemente do solver: um mesmo programa pode rodar em vários solvers.

Não sei dizer se é a melhor ferramenta, mas parece ser uma boa para iniciantes. A linguagem já valida muita coisa na compilação, além de ter uma sintaxe pensada para descrever esse tipo de problema.

Definido o problema e a ferramenta, agora é partir para a solução.

Parâmetros da otimização

A otimização trabalha com dois tipos de dados: parâmetros e variáveis. Os parâmetros são definidos pelo usuário, enquanto as variáveis são calculadas durante a otimização.

Abaixo, a especificação dos parâmetros utilizados no problema:

enum DAYTYPE = {Work, Saturday, Sunday, Holiday};
array[int] of DAYTYPE: calendar;

int : leave_days;
int : intervals;

O enum DAYTYPE é para identificar o tipo de dia: útil, sábado, domingo ou feriado. O calendário é uma sequência de dias, que pode ser algum dos DAYTYPEs. O parâmetro leave_days é a quantidade de dias de férias e intervals a quantidade de períodos de férias.

Os parâmetros podem ser definidos diretamente no código, como no caso do enum DAYTYPE, ou a partir de um arquivo texto. Abaixo, um arquivo de exemplo, definindo 60 dias de calendário, 30 dias de férias e 3 intervalos:

calendar = [Work,Saturday,Sunday,Work,Work,Work,Work,Work,Saturday,Sunday,Work,Work,Work,Work,Work,Saturday,Sunday,Work,Work,Work,Work,Work,Saturday,Sunday,Holiday,Work,Work,Work,Work,Saturday,Sunday,Work,Work,Work,Work,Work,Saturday,Sunday,Work,Work,Work,Work,Work,Saturday,Sunday,Holiday,Holiday,Work,Work,Work,Saturday,Sunday,Work,Work,Work,Work,Work,Saturday,Sunday,Work];
leave_days = 30;
intervals = 3;

O calendário está definido como um array de inteiros, porque uma otimização trabalha com vetores numéricos. O enum DAYTYPE é apenas um syntax sugar, oferecido pelo MiniZinc, para dar apelidos aos números inteiros que representam os tipos de dia.

Representação das férias

A estrutura de dados, que representa o problema, é muito importante. Ela impacta na forma de escrever a solução e na velocidade em que o solver resolve o problema.

Inicialmente, estava considerando as férias como um conjunto de dias. Após dificuldades em codificar algumas restrições, optei por usar uma matriz, com o dia de início e fim de cada período de férias:

enum LEAVE = {Start, End};

array[1..intervals, LEAVE] of var 1..length(calendar): leave;

As variáveis são diferenciadas dos parâmetros pelo prefixo var. Nesse caso, estou criando um array bi-dimensional leave, com uma dimensão representando a quantidade de intervalos e outra os atributos (Start e End).

A definição var 1..length(calendar) indica que os valores dessa variável tem um domínio específico. Nesse caso, que as férias não podem estar fora do calendário. É importante definir dessa forma, ao invés de simplesmente usar algo como int, porque a especificação de um domínio facilita o trabalho do solver.

Criei outras variáveis, para validar restrições e calcular a função de otimização, mas todas elas são derivadas de algum cálculo sobre a variável leave.

Implementando as restrições

A definição das restrições é bem simples no MiniZinc, sendo escritas na forma constraint <expressão booleana>. As restrições do problema estão codificadas abaixo, com comentários explicando o objetivo de cada uma:

% Os intervalos estão ordenados e com distância mínima
constraint forall(i in 2..intervals)(leave[i-1, End] + 7 <= leave[i, Start]);

%Os intervalos tem começo e fim consistentes
constraint forall(i in 1..intervals)(leave[i, Start] < leave[i, End]);

%Um intervalo tem mais de 15 dias
constraint exists(i in 1..intervals)(leave[i, End] - leave[i, Start] + 1 >= 14);

%Todos intervalos tem mais de 5 dias
constraint forall(i in 1..intervals)(leave[i, End] - leave[i, Start] + 1 >= 5);

%O total de dias é igual ao disponível
constraint sum(i in 1..intervals)(leave[i, End] - leave[i, Start] + 1) == leave_days;

%Garante que não começa antes de um feriado/fds
constraint forall(i in 1..intervals)(calendar[leave[i, Start]] == Work 
                                     /\ calendar[leave[i, Start] + 1] == Work
                                     /\ calendar[leave[i, Start] + 2] == Work);

Observe que a primeira restrição, referente à ordenação dos períodos, também força que haja ao menos 7 dias de diferença entre eles.

Não é uma regra definida pela CLT, mas sem ela é possível separar 10 dias de férias em dois períodos consecutivos de 5 dias, separados pelo final de semana. Suponho que a maioria das empresas não aceitaria essa “malandragem”, que adicionaria 2 dias a mais de férias.

Além das restrições da especificação, optei por adicionar uma nova, referente ao fim das férias. Ela não deve acabar em uma quinta-feira, por exemplo, que tem um dia de trabalho e logo depois outra folga:

%Garante que não termina um dia antes de outra folga 
constraint forall(i in 1..intervals)(if leave[i, End] + 1 <= length(calendar) 
                                     then calendar[leave[i, End] + 1] == Work 
                                     else true 
                                     endif
                                     /\ 
                                     if leave[i, End] + 2 <= length(calendar) 
                                     then calendar[leave[i, End] + 2] != Work 
                                     else true 
                                     endif);Work);

Não acho que seja um desejo unânime, mas conheço pessoas que não gostam de voltar para apenas um dia de trabalho. Ademais, depois de colocá-la, tirar não parecia uma boa opção: o tempo de execução, ao adicionar essa restrição, vai de 20 minutos para 3 minutos.

Infelizmente, desconheço o funcionamento por trás dos algoritmos, para dar uma explicação razoável para tamanha diferença de tempo. Executando o processo com a flag --statistics, a única métrica discrepante era o número de “propagations”…que não sei dizer do que se trata.

Um ponto para quem, como eu, argumenta que as pessoas deveriam procurar estudar mais os conceitos por trás das ferramentas que as ferramentas em si. Uma pena que, dessa vez, estou no lado de quem só aprendeu a usar a ferramenta.

Definindo o objetivo

Calcular a função objetivo, foi a parte mais complicada da modelagem. A falta de prática dificultou, tive que repensar alguns cálculos e sofri muito para resolver questões que pareciam simples.

Vou comentar cada “etapa” da função, já que ela é uma combinação de múltiplas variáveis.

Calculando o descanso total

O principal alvo da otimização é maximizar os dias de folga + férias, evitando que as férias fiquem sobrepostas às outras folgas. Para realizar esse cálculo, somei todos os dias de folgas com o período de férias:

var int : total_leisure = sum([calendar[day] != Work \/
                               exists(i in 1..intervals)(day >= leave[i, Start] 
                                                         /\ day <= leave[i, End]) 
                              | day in 1..length(calendar)]);

Usei o conceito de “list comprehension”, em que se pode aplicar filtros e transformações, retornando uma nova lista. Funciona exatamente da mesma forma que em outras linguagens, como Python e Haskell por exemplo.

Calculando o descanso extra

Uma prática, que parece comum ao organizar férias, é emendar férias com feriados prolongados. Para considerar esse aspecto na função objetivo, criei uma variável adicional que consiste em contar os dias “bônus” de descanso, que ficam logo antes e depois das férias:

function var bool: extra_leisure_after(int: offset, int: leave_seq) = forall(i in 1..offset)
                                                                        (if leave[leave_seq, End] + i <= length(calendar) 
                                                                         then calendar[leave[leave_seq, End] + i] != Work 
                                                                         else false endif);


function var bool: extra_leisure_before(int: offset, int: leave_seq) = forall(i in 1..offset)
                                                                             (if leave[leave_seq, Start] - i >= 1
                                                                              then calendar[leave[leave_seq, Start] - i] != Work 
                                                                              else false endif);

var int : extra_leisure = sum(i in 1..intervals)(sum(j in 1..5)(extra_leisure_after(j, i))) +
                          sum(i in 1..intervals)(sum(j in 1..5)(extra_leisure_before(j, i)));

Foi um cálculo mais complicado de implementar do que eu esperava. Criei duas funções auxiliares, uma para verificar os dias antes do começo da férias e outra para os dias após o término. Para dado K, elas calculam se esses K dias antes (ou depois) são todos de folga também.

Para esse caso, considerei os próximos 5 dias pensando no Carnaval, que totaliza 5 dias de folgas contíguas para quem não trabalha na quarta-feira de cinzas. Esses dias extras serão somados como “bônus” na função objetivo.

Calculando a distribuição das férias

Assumindo que temos mais de uma opção ótima, levando em conta dias de descanso e emendas, entendo que uma boa ideia é espaçar os períodos de férias de forma consistente. Em outras palavras, não ficar uma atrás de outra e nem longos períodos sem férias.

A ideia inicial era simplesmente maximizar a distância entre os intervalos, mas acabava sendo válido deixar dois períodos de férias bem próximas e outro muito distante.

Depois de testar várias abordagens, optei por calcular algo parecido com uma variância, para penalizar intervalos muito diferentes:

array[1..intervals-1] of var int : distances = [leave[i, Start] - leave[i-1, End] | i in 2..intervals];
var float : mean_distance = sum(distances) / intervals;
var float : variance = if intervals == 1 then 0
                       else  sum(i in 1..intervals-1)(abs(distances[i] - mean_distance)) / (intervals - 1) endif;

O solver estava tendo problemas ao lidar com exponenciação e raiz, por isso optei por calcular a diferença absoluta em relação a média, ao invés de variância. Suponho que esse cálculo não tenha validade estatística, mas serviu para mitigar o problema de intervalos muito díspares entre si.

Função objetivo

A função final é uma composição das variáveis calculadas:

var float : objective = 1000 * 100 * (total_leisure + extra_leisure)
                        + 100 * mean_distance
                        - variance;

solve maximize objective;

O ideal seria fazer uma otimização hierárquica: maximizar total_leisure e extra_leisure. Em caso de empate, maximizar mean_distance e reduzir variance. Não é algo possível, então optei por “concatenar” os números em ordem de prioridade, deslocando com multiplicação da base.

Resultados

Um problema de avaliar problemas de otimização, é que normalmente é complicado calcular a solução ótima na mão. Se for fácil, não precisa modelar, basta calcular.

Assim como a modelagem, a minha validação foi completamente informal, só fui ajustando o modelo e avaliando se os resultados pareciam plausíveis a mim.

Um relatório de execução, que gerei para o ano de 2021, com alguns feriados que registrei manualmente:

Execution time: 0:02:30.260204

total_leisure = 139
extra_leisure = 9
distances = [60, 252]
mean_distance = 104.0
variance = 96.0
objective = 14810304.0000001

Interval 1: 2021-01-26 - 2021-02-04
Interval 2: 2021-04-05 - 2021-04-19
Interval 3: 2021-12-27 - 2021-12-31

O modelo alocou todas as divisões próximo de feriados: aniversário da cidade de São Paulo (25/01), páscoa (02/04) e natal (24/12 e 25/12).

Removendo os feriados municipais, aniversário da cidade de São Paulo (25/01) e consciência negra (20/11), o feriado do começo de ano é movido para próximo da proclamação da república (15/11).

Execution time: 0:02:02.274955

total_leisure = 143
extra_leisure = 11
distances = [211, 32]
mean_distance = 81.0
variance = 89.5
objective = 15408010.5000001

Interval 1: 2021-04-05 - 2021-04-19
Interval 2: 2021-11-16 - 2021-11-25
Interval 3: 2021-12-27 - 2021-12-31

Em uma execução sem feriados, as férias ficam bem espaçadas, como esperado pelo critério de desempate da otimização:

Execution time: 0:04:00.382011

total_leisure = 128
extra_leisure = 2
distances = [111, 221]
mean_distance = 110.666666666667
variance = 55.3333333333334
objective = 13011011.3333334

Interval 1: 2021-01-06 - 2021-01-14
Interval 2: 2021-05-05 - 2021-05-20
Interval 3: 2021-12-27 - 2021-12-31

O tempo médio de execução ficou em torno de 3 minutos, usando processamento paralelo (6 processos) e Gecode como solver. A otimização processos não consome muita memória, mas demanda muito processamento e escala muito bem horizontalmente. Usando apenas um processo, chegava na faixa dos 20 minutos de execução.

Para contexto, um resumo das configurações do sistema, que utilizei para rodar essas simulações:

OS: Pop!_OS 20.10 x86_64 
Kernel: 5.11.0-7612-generic 
CPU: Intel i5-10400F (12) @ 4.300GHz 
Memory: 7902MiB / 15871MiB 

Integração com Python

Para fazer os testes desse modelo, eu fiz um script usando a biblioteca que integra o MiniZinc ao Python. Dessa forma, eu consigo gerar o calendário e formatar a saída, trabalhando com as datas em si e não os intervalos em dias.

A biblioteca é basicamente um “wrapper” no entorno da interface de linha de comando do MiniZinc, bem fácil de utilizar. O script run.py está em um repositório, junto com o modelo (leave.mzn) e um Dockerfile para quem desejar testar sem instalar o MiniZinc.

Além de chamar o modelo, o script Python também gera um arquivo de parâmetros leave.dzn, para que seja possível executar o modelo pela linha de comando ou IDE. É útil para rodar com outros parâmetros, como estatísticas e soluções parciais.

Agora é fácil

O modelo final ficou simples, mas não se engane: eu fiquei a semana inteira do lockdown, mexendo e refazendo do zero, até chegar nessa versão. Todo mundo, que aprendeu a programar, é familiar a essa experiência: é simples entender quando alguém explica, mas fazer é outra história.

Otimizar férias não é um problema muito relevante, mas é algo que pude especificar do zero e fácil de entender, foi divertido para treinar programação por restrição. Se o problema é pouco importante, o mesmo não pode ser dito de programação por restrição, conceito que tem várias aplicações importantes.

Curioso que, um ano atrás, eu estava envolvido em um projeto para dimensionar filas dos hospitais. Entendendo outros conceitos novos como modelos de compartimento e usando um simulador de eventos discretos para modelar as filas de UTI.

Um ano depois — no pior estado da pandemia e com hospitais já colapsados — estou usando o tempo de lockdown para organizar as férias na pandemia. Também um problema de logística, mas muito menos nobre. É para se pensar, o que está acontecendo com o país e com a gente.